percurso
É muito estranho pensar no
processo de crescimento e construção da Marenka; o início, percurso e fim. É
impossível pensar o início exato de tudo, porque acho que sempre tive a vibração
dessa criatura, na maioria das vezes esmagada e encoberta, mas sempre
ali, presente. Em Panidrom, ela achou o espaço tempo exato para escancarar as
portas e janelas e expor um lado meu que negava e que, de certa forma, ainda
nego.
Marenka não surgiu de repente,
não foi entregue nas minhas mãos e nem a compreendi de um dia para o outro. É
como se eu tivesse aos poucos encaixado uma peça na outra, pisando leve e
receosa nesse percurso desconhecido de autoconhecimento na criação cênica. Até
hoje ela é um mistério em vários aspectos e ainda é difícil assumir essa
energia agressiva em toda apresentação, mas o mais interessante e desafiante é
aprofundar as diversas camadas e contradições dessa criatura.
Se nos limitarmos em uma visão
superficial e reducionista, Marenka será só uma mendiga grossa, arrogante e
irônica, sem muito a acrescentar. Mas aprofundando nas referências, os motes
para criação, as experiências vividas em processo e a vibração que ela carrega
das ruas, as facetas dessa mendiga se tornam infinitas.
amuleto
No início, no primeiro ensaio de
Panidrom, o João conduziu uma experiência cênica em que, observando uma
fotografia na improvisação, surgiu a história do amuleto, o pequeno pato que um
senhor carregava na imagem. O amuleto se chamava Carinho. Considerando que
nômades não possuem espaços/objetos fixos, o amuleto se torna seu objeto de
carinho, aquilo que você carrega pra onde você for. No caso da Marenka, seu
amuleto começou com um pato, que virou um olho desenhado na mão, que virou uma mancha
espalhada pela mão. Nas ruas e espaços públicos, ela se defende e acredita
nesse pedaço de mancha como sua proteção. Apenas um detalhe, já que seu corpo
inteiro já é um escudo. Sua própria fala já é um escudo. Como mulher, pobre,
mendiga se não fosse toda escudo, provavelmente já não existiria.
Palhaço Paralama e Mulher
Borboleta
“O circo é uma família com sobrenomes diferentes,
mas comportamentos iguais. As pessoas se ajudavam,
ninguém passava fome. Existia solidariedade, amizade.”
Nitinha Durso, minha tia
Os personagens envolvidos nessa
empreitada artística parecem retirados de um roteiro de filme, ou mesmo de uma história
épica-romântica-fantástica: meu avô, Carmindo Durso (1910- 1982) e minha avó,
Alice Rodrigues Ferro Durso (1914- 1993).
Alice morava na casa de seus pais, em São João do Matipó- MG. Era filha
de João Ferro, um dos maiores fazendeiros da região. João Ferro era tão rico,
mas tão rico que o gerente do banco reclamava dizendo que não havia mais espaço
para guardar o dinheiro dele no cofre do banco. O que João Ferro tinha de
dinheiro, tinha de rigidez. Ele era muito enérgico e cismava que os filhos tinham
que trabalhar. Um dia, mandou Alice tirar leite de uma vaca chamada “Perigo” e
o resultado foi que a vaca pisou em cima dela toda e a deixou em carne viva.
Ela teve que ser deitada em folha de bananeira com óleo. Por essas e outras que
talvez, para Alice, não tenha sido tão difícil abrir mão de sua casa e sua
família.
Foi em 1933, quando tinha 18 anos, que
chegou o circo na cidade e, junto dele, o Palhaço Paralama, vulgo Carmindo
Durso. Alice e Carmindo se apaixonaram fervorosamente, e quando o circo ia zarpar
para outro destino, trataram de dar as mãos e seguirem juntos com o circo.
Alice largou tudo e aprendeu a ser artista de circo, mais especificamente,
trapezista, se tornando a Mulher Borboleta.
Passaram por poucas e boas.
Tiveram uma linda filha, chamada Nitinha, que também tratou de se tornar
artista de circo, a "Shirley Temple Brasileira". Nitinha se lembra de
um dia de grande aperto quando, certa vez, chovia incessantemente por 20 dias e
o circo não conseguia estrear. Estavam sem dinheiro nenhum, então, Alice
decidiu abrir o cofre de Nitinha e dividir com todos do integrantes do circo.
Neste dia, Nitinha chorou incessantemente.
O palhaço Paralama se vestia como um palhaço
tradicional de circo: um aro de papelão listrado como gola, gravata borboleta,
suspensório e chapéu de cetim. Sua roupa era branca e vermelha. Tinha uma
cadela de pano, chamada “Mijoleta”. Seu sucesso era pegar a cadela e jogar em
cima dos outros, falando “Mijoleta, pula!”, só que ela era presa com um
elástico, e sempre parecia que ela ia cair em cima do público, mas ela sempre
voltava para a mão firme do Paralama. Para castigar sua cadelinha, batia com
ela no chão, dizendo “Uiuiui, segura ela!”. A cadela nunca batia em ninguém,
ele tinha a percepção de espaço muito aguçada. Tão aguçada que depois que saiu
do circo foi pintor e letrista, e nunca mediu nenhuma parede para escrever
algo. Sempre acertava a medida das palavras no muro.
Alice,
a trapezista Mulher Borboleta, colocava 7 quimonos japoneses e ia tirando eles
durante seu número do trapézio. Ao final, estava de roupa de borboleta, lá no
alto. Um dia, a Mulher Borboleta caiu de 15 metros de altura e o osso chegou a
sair do braço.
Viajaram muito, por quase o
Brasil inteiro, de trem ou caminhão, pois as vezes ficava mais barato ir de
trem. Quem montava o circo era chamado de “marra cachorro”. Quem trabalhava no
circo trabalhava até tarde e dormiam durante o dia, deixando as crianças soltas
e livres, por isso quase sempre precisavam de babás e cuidadoras. Tody, um
pastor alemão do circo, de vez em quando, enquanto os pais dormiam, fazia o
papel de babá de Nitinha.
Alice cansou de ser borboleta,
sentiu saudade de sua família e de firmar os pés na terra. Vida de circense não
era mole. Decidiram sair do circo e ir para Carneirinhos, cidade onde estavam
os pais de Alice. O palhaço Paralama sempre sentiu saudade do circo e do
público que o recebia com carinho. A nostalgia da vida cigana-circense, livre
desse sedentarismo urbano, seduz a família até hoje, até mim.
saudade, memória
Criamos muitas composições -
pequenas produções cênicas direcionadas- durante o processo e, relembrando, já
nem sei mais onde e com quem surgiram alguns materiais. Alguns assuntos se
tornaram recorrentes e sempre voltavam em uma composição ou outra. As vezes
escolhia trazer um material novamente para a composição, mas muitas vezes ele
aparecia sem que nem tivesse percebido. Isso aconteceu com os materiais sobre a
saudade e a memória. Desde que pesquisei sobre as raízes artísticas circenses
da minha família para a peça, fui embalada em uma mistura de nostalgia e
melancolia, esperança e saudade.
Desde que Carmindo e Alice
viraram material de composição, comecei a sentir falta das pessoas: pessoas da
minha família, pessoas que não havia conhecido, pessoas que morreram, pessoas
que foram abandonadas por alguém, pelo Estado, pessoas que picharam as paredes,
grafitaram os muros. A memória é uma ilha
de edição. Posso abandonar algo, mas também posso fortalecer algo: reviver
algo que já estava morto. Marenka tem um pouco dessa força, aponta as frases do
muro, grita saudade, expõe o ridículo dos outros, expõe as falhas, deixa o fogo
queimar.
de onde veio Marenka
JUNHO DE 2013
As inundações na Europa central ameaçaram várias cidades da Alemanha,
República Tcheca e Áustria, ao longo dos rios Elba e Danúbio. Nas áreas de
risco, os moradores se revezavam dia e noite para encher sacos de areia para
reforçar os diques. As autoridades de Praga, com a ajuda de soldados do Exército
tcheco, levantavam barreiras de sacos de areia contra as águas.
Marenka ainda se encontra correndo por aí, carregando seus sacos de
areia. de mentira.
na praça saens peña
COMO SE EXPOR?
COMO SE TORNAR INVISÍVEL?
COMO PESA UMA MEMÓRIA?
QUEM SE VAI, VAI PARA ONDE?
Essas foram as perguntas
direcionadas para a minha pesquisa de campo no espaço que escolhi no Rio de
Janeiro: a praça Saens Peña. Escolhi esse espaço, pois foi o primeiro bairro que morei e onde mais me senti "acolhida" quando me mudei da cidade pequena para o Rio cidade (des)maravilha. No meio do caos e insegurança, era lá que sentava e apenas observava as horas e pessoas passarem.
Retornei a mesma praça com outro olhar. Aparentemente familiar, nas periferias da praça se
encontram moradores de rua. Nem sempre nas periferias, eles escolhem os dias de
sol para tomar banho na água do lago sujo da praça. Ao olhar a praça, foram
esses que me saltaram aos olhos e esses que formaram muito do que a Marenka é.
Ironicamente, meu cartão de metrô estava vazio e estava sem dinheiro para
voltar. Virei mais uma pedinte naquela praça.
rio de janeiro, praça saens peña.
dá licença, criança. deus te abençoe com esse panfleto do Crivella. não
tenho dinheiro suficiente. o que se compra com 50 centavos? o que está
invisível? ME AJUDE. porque a preocupação é com o olhar do outro. sentei na praça. o que é mais difícil? me
expor. por quê? porque dependo da aprovação dos outros. por quê? porque eu
tenho medo. um senhor se levanta, abre as calças e o cinto e levanta a cueca,
depois as calças e o cinto. encurvado, ele apalpa os bolsos em uma lentidão
inacreditável. óculos caído no nariz e língua para fora. observa tudo, em tempo
lento. abraça o joelho com as mãos. pede um picolé. volta e meia lava as mãos
no lago. não tinha me dado conta de como esse lago é sujo. sujo. sujo. sujo.
como os peixes sobrevivem aqui? licença. claro. daqui a pouco eu tenho que
voltar. tchau. em volta do círculo de xadrez coberto, camas e camas de papelão.
uma grande área de descanso e moradia. precisei pedir 3 vezes. ganhei 4 reais
em 5 minutos. quantas vezes um mendigo precisa pedir? eu, fofa, meio branca,
sei lá. traços finos. muito fácil se sentir sozinha. a não ser pelo olhar de um
bebê que vê. olha fundo. a não ser pelo olhar do mendigo que vê e olha fundo.
do outro lado da rua, por entre carros e barulhos, ele está lá. sorrindo sem
dentes, balançando a mão com intensidade, como se já me amasse por anos.
a gravidez
Assim como a saudade e memória, a
gravidez também foi um assunto recorrente no processo. Todos nós de alguma
forma engravidamos. Todos nós acreditamos e esperamos alguma coisa do processo
e do mundo. Volta e meia alguém aparecia com barriga em composição. Volta e
meia era mentira. Mas, no final, ficou a Marenka grávida, de verdade. Foi
preciso ser concreto e somente no final do processo entendi o porquê.
Em uma reunião de equipe, decidimos abrir cartas de tarô para todos. A carta de tarô que saiu para
Marenka foi A Estrela e veio desmistificar grande parte do que
acreditava dessa mendiga pessimista e grosseira. A estrela é a esperança de
uma nova era, coletiva e alegre. Me dei conta que é o parto urgente de Marenka
que conclui tudo o que já estava encaminhado. Panidrom
não é o lugar. Panidrom não é terra fértil para nascer filho. Nenhum lugar onde não seja possível
viver em condições dignas e justas é o lugar. Continuar a caminhar. Não é o fim da peça, é o começo. A estrela, hasteada
lá no topo, vibrante, é a prova concreta de esperança, de uma utopia possível. Marenka é grávida de um estrela.